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segunda-feira, abril 22, 2013

A minha outra avó

A minha avó paterna fez ontem 89 anos.
A minha avó T., é assim que se chama,  sempre foi o aposto da minha outra avó, aquela de que vos falei logo ao início neste post,  aquela de quem choro a morte todos os dias e de quem tenho saudades a cada minuto.
Quem conhece a minha avó T., acha que a vida dela deve ter sido horrível, tal é o tamanho da amargura que carrega. É verdade que teve os seus momentos. Nunca conheceu o pai, passou por um divórcio numa altura em que ninguém se divorciava. Mas nunca passou necessidades, não enfrentou mortes prematuras, nem doenças, nunca esteve num hospital mais que o tempo necessário para ir a uma urgência. Teve filhos e netos, e uma vida afectiva tão preenchida quanto ela permitisse.
Nunca permitiu muito. Aquilo é uma questão de feitio. A cara sempre fechada e aborrecida, sempre enfadada com a vida e com o mundo. Cara de "todos lhe devem e ninguém lhe paga" como diz a minha mãe.
Tivemos os nossos momentos. Quando era criança gostava de estar com ela. Dava-me gemadas e fazia-me ovos moles de frade. Sabia dezenas de cantigas de revistas e peças de teatro e filmes antigos, e ainda hoje dou por mim a cantarolar as músicas d' "A aldeia da roupa branca". Fez-me um fato para o Carnaval de lavadeira de Caneças. Tinha um colchão de lã, fofo, fofo, mas não me deixava saltar lá em cima. Tinha quintal e eu podia ficar lá a brincar toda a tarde se quisesse.
Mas à medida que fui crescendo o outro lado foi sendo mais forte. A minha avó T. passava a vida a perguntar o que faziam os pais dos meus amigos para ver se eram pessoas que interessassem. A única criança que passava o Natal com ela sem serem os próprios netos era o meu primo direito e ela não lhe dava um presente. Nunca dizia bem de ninguém. Largava palavras que sabia serem verdadeiras bombas, consciente dos estragos que ia causar. Detesta a minha mãe. Nunca me deu um presente que não fosse dinheiro. Nunca houve uma vez que eu chegasse ao pé dela e que não dissesse que estava gorda, ou magra, ou vestida muito escuro, ou com o cabelo mal penteado, ou com as bainhas mal feitas, ou com a cara demasiado pálida, ou mil e uma coisas que lhe passam pela cabeça e que nunca são cumprimentos ou elogios.
Quando começou a ficar fisicamente mais debilitada, o meu pai resolveu arranjar alguém que lhe desse um bocado de apoio, que tratasse da casa e que sobretudo a ajudasse.
Foram cinco empregadas em seis meses. Nenhuma aguentou aquela forma de estar, sempre desagradável, sempre maçada, desconfiada, a fazer inventarios diários ao frigorífico, não fosse alguém comer um iogurte. Sempre a dizer que a magoavam, quando a ajudavam a levantar, quando lhe esfregavam as costas ou lhe cortavam as unhas dos pés, alheia ao esforço alheio. Ao fim de seis meses estava visto que a solução caseira não era viável, a menos que encontrássemos alguém com ambições a santo para suportar aquelas trombas um dia inteiro.
A minha avó T. vive há anos à espera de morrer. Há muito tempo que não faz uma data de coisas porque "já não vale a pena".
Não vale a pena investir em amizades, não vale a pena reforçar laços com a família, ou sequer criar laços profundos com migalhas, não vale a pena comprar roupa, não vale a pena ir aos aniversários, ou sequer ao casamento do neto. Não vale a pena cuidar do corpo ou da alma, porque é tudo uma questão de tempo para que tudo se acabe.
Mas o tempo não acaba quando queremos, mas quando Deus quer, e há anos que espera o seu momento, e o seu momento ainda não chegou. 
E ontem, quando estávamos no almoço dos seus 89 anos, lá estava ela, a fazer um frete imenso, sem retirar qualquer prazer daquele momento, sem apreciar o esforço do meu pai, sem levantar os olhos do prato, sem conversar, sem dar um sorriso, sem gabar os presentes.
E eu não conseguia parar de pensar, em todas as pessoas que adoram a vida e que morrem novas, em todas as crianças que lutam contra doenças na esperança de ainda terem um futuro, tanta mãe que deixa filhos pequenos orfãos.
E depois tento entender a lógica de tudo isto e não consigo e desisto, porque se penso muito na forma arbitrária como parece que a vida e a morte são geridas, fico com os pirolitos ainda mais baralhados.
É minha avó e gosto dela. Gosto dela porque sei que à maneira dela gosta ou já gostou de nós, pelo menos um bocadinho. 
Gostaria dela se não fosse minha avó?

1 comentário:

  1. Durante 2 anos visitei os meus avós num lar de idosos (eu própria já dirigi um lar) e apanhas velhotes de todos os feitios - a minha avó foi "terrivel" até aos 70 anos, depois adoçou, ela até dizia a todos que a neta favorita dela era a do meio (eu sou a mais nova de tres). Há velhos que são como alguns putos, dá vontade de lhes dar dois estalos para serem bem educados ou menos mal agradecidos. Mas no fim, quando partem, a Historia deles ficou sempre por contar. Esquecemo-nos sempre de lhes perguntar porque são assim, o que é que as vida lhe deu para serem assim (bons ou maus), muitos filhos/netos até os evitam porque os momentos são tão desagradáveis e perturbadores que custa aguentar aquilo mas, no fim, são nossos e fazem parte de nós.

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