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quinta-feira, maio 14, 2015

História de uma menina parva e de outras meninas parvas

Era uma vez uma menina parva. Tão parva, que gostava de perguntar às outras meninas quanto ganhavam os pais, que enchia a boca para dizer que o pai era "engenheiro", que falava das suas "jóias" e que dizia com tiques de superioridade às miúdas nadas e criadas na linha de Sintra: tenho sete fatos de treino, todos da Benetton.
As outras meninas, mais preocupadas com o jogo do bate-pé do que com as habilitações e os ordenados dos pais umas das outras, começaram a estranhar sem que deixassem entranhar, a conversa da menina parva caída de novo na escola.
Era uma vez uma menina parva e irritante. Tinha onze anos mas conseguia ter uma petulância e arrogância quase sempre reservada aos adultos.
As outras meninas podiam-na ter ignorado. Deixá-la com os fatos de treino, com as marcas, com o ouro e com as caganças. Mas não. Tal como aquela criança não tinha maturidade para saber o que dizia, também as outras não tinham maturidade para fazer o que seria mais razoável.
Então as outras meninas todas, todas, começaram a gozar com aquela menina parva e irritante. E à medida que viam que ia surtindo efeito, que a menina com tiques de nobreza amortecia e entristecia, gozaram ainda mais. Primeiro nos intervalos das aulas, mais tarde na rua a caminho de casa. Organizavam-se em partidas cada vez mais elaboradas para a menina parva. Marmelada dentro dos sapatos que ficavam no balneário na aula de educação física. Canticos que entoavam na rua seguindo menos de dois metros atrás dela, um grande grupo de meninas parvas atrás de uma só menina. Todos os dias. Sem excepção. E se alguém arriscava ter pena da menina parva, levava pela mesma medida, e acobardava-se.
A menina parva foi ficando mais fechada, calada e acabrunhada.
As outras meninas tornaram-se cada vez mais parvas que a menina parva.
A mãe tentou resolver a situação. Ligou aos pais das meninas que ela achava que tinham a liderança daquela "organização", mas foi ignorada, porque "isso são coisas de crianças". Foi à escola, falou com directores de turma e professores, mas sem sucesso. As meninas muito más eram afinal alunas aplicadas e sossegadas de quem não havia uma palavra a dizer.
As coisas acalmaram. A visão de um adulto metido naquilo que até então era só uma brincadeira de ir às lágrimas, pilhas de riso e divertimento, amainou as coisas, e algumas meninas más solidarizaram-se com a menina parva e as outras "até" deixaram.
Entretanto vieram as férias de Verão, e com elas algum esquecimento, maturidade e vontade de fazer diferente. Tinha sido um ano horrível para todas, e todas sem excepção sentiam um enorme desconforto.
Isto passou-se há trinta anos. Não houve agressões físicas, murros, estalos, nem pontapés, mas houve traumas e arrependimentos para toda a vida.
Em todas as meninas, sem excepção.

1 comentário:

  1. Sempre detestei fatos de treino, tinha apenas os estritamente necessários para a educação física. Se calhar foi isso que me livrou de ser vítima ou agressora, já que parvoice tinha que chegasse.

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